Toda a Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça; II Timóteo 3:16

O Desafio a Escolher

O Desafio a Escolher
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O DESAFIO A ESCOLHER
 
 
O corpo do grande discurso de nosso Senhor na Montanha, sem erro, foi concluído em Mateus 7:12. A natureza radical e não convencional do Reino, seus cidadãos e sua justiça foram clara e poderosamente traçados (5:3-7:12). Os demais versículos do Sermão (7:13-27) contêm o apelo de Jesus pelo compromisso de seus ouvintes.
 
Este notável discurso espiritual, que dá definição a toda verdadeira pregação do evangelho, não foi pretentido meramente para informar, mas para persuadir. O Sermão da Montanha toca nossa vontade, bem como nosso entendimento. É um chamado a escolha radical. E o Grande Pregador não pretende que escapemos dele ou de sua mensagem. Ele está dizendo, com efeito: "Meu Sermão está terminado. Agora você tem que decidir o que você fará a respeito dele. Pondere cuidadosamente. Escolha sabiamente. Vida e morte estão no rumo que você tomar."
 
O que é óbvio em tudo isto é o fato que, não obstante todo o poder de Deus, os homens podem rejeitar sua vontade. Seu longo e árduo trabalho redentor resulta, finalmente, não em um decreto irresistível (Atos 7:51; Hebreus 10:29); mas em um convite solene (Mateus 11:28-30).
 
 
O homem não é um robô. Sua vontade, por determinação de Deus, é inviolável. Jesus pode suplicar, mas não pode compelir. Assim, ele nos ensina pacientemente e, então, insistentemente solicita.
 
Ao fazer seu apelo de encerramento, o Senhor fala só de duas alternativas: duas portas, dois tipos de fruto, dois fundamentos. A escolha pode ser difícil, porém não é complexa. Temos que decidir entre o caminho da submissão e da confiança e o caminho da rejeição e da rebelião. Ele insiste com seus ouvintes para que escolham entre estas alternativas, considerando não somente suas exigências, mas também suas conseqüências. Aonde esta estrada me levará? Que tipo de fruto esta árvore produzirá? Resistirá esta casa à mais violenta tempestade?
 
As exortações deste trecho final podem ser divididas em três unidades (7:13-14; 15-23; 24-27). Entre duas admoestações a escolher sabiamente, está inserido um aviso sobre o perigo da sábia escolha apresentada por falsos mestres.
 
 
O Caminho Estreito
 
"Entrai pela porta estreita (larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz para a perdição e são muitos os que entram por ela), porque estreita é a porta e apertado o caminho que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela." (Mateus 7:13-14)
 
 
Aqui Jesus abertamente insiste com seus ouvintes para que escolham o caminho que é duro e apertado e rejeitem um trajeto mais fácil e mais confortável. Ele até deixa claro que a estrada à frente é tão inexoravelmente exigente quanto a porta pela qual nela se entra, e mais do que isso, pode ser, algumas vezes, um caminho solitário, uma vez que muitos homens não o acharão a seu gosto. O convite ao reino feito pelo Senhor, notavelmente honesto, torna excessivamente repugnantes os apelos carnais e as promessas açucaradas de alguns pregadores modernos.
 
Não há nada de surpreendente neste convite. É um convite a entrar num reino cuja feição mais saliente tem sido a estreiteza de sua visão e a singeleza de seu compromisso (5:48; 6:19-24,33).
 
A porta estreita é a soberana autoridade do Senhor, e o caminho apertado a obediente submissão à Sua vontade. Aqueles que entram não se encontrarão mais fazendo a coisa esperada, tradicional, óbvia. Seguindo o Filho de Deus, suas vidas serão tão diferentes como seus destinos.
 
Obviamente, há muitas coisas que aqueles que escolhem a estrada estreita do reino têm que deixar para trás. Estaremos abandonando a multidão despreocupada que nunca tem que perguntar se o que está fazendo é agradável a Deus.
 
O que é mais importante, estaremos nos desfazendo de nossa velha personalidade, com seu modo arrogante, teimoso e egoísta e entregando a mente e o pensamento a um Soberano mais sábio e mais benevolente (Mateus 16:24-25; 2 Coríntios 10:4-5).
 
Somente deste modo chegaremos a ser mansos e misericordiosos, pobres de espírito e puros de coração, capazes de amar nossos inimigos e orar por aqueles que nos perseguem.
 
Mas, se o caminho estreito do reino constringe o espírito obstinado e a mente voltada para si mesmo, ele não estreita o amor (Filipenses 1:9; Efésios 3:17-19); não constringe a paz (Filipenses 4:7); não seca a alegria (1 Pedro 1:8); não espreme a misericórdia (Efésios 2:4); não esmaga a bondade (2 Coríntios 9:8); não estrangula a esperança (Romanos 15:13).
 
Tudo isto abunda na estrada estreita. A única coisa que a porta estreita arranca de nós é aquela impiedade que nos envenena e destrói.
 
Somente o homem que ainda ama essa impiedade se sentirá oprimido e sufocado na estrada do Rei. O pecado é o ladrão que veio "roubar, matar e destruir", mas o "Bom Pastor" veio para que os homens tenham vida, e tenham-na abundantemente (João 10:10).
 

Buracos na Estrada Estreita

"Acautelai-vos dos falsos profetas que se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores" (Mateus 7:15). Apenas uma segunda vez, no Sermão, Jesus inicia suas palavras com um sóbrio "acautelai-vos" (grego proskete). A primeira aborda o perigo de dentro: hipocrisia (6:1). Ele agora fala do perigo de fora: os falsos mestres. Há algumas pressuposições naturais, que ficam por trás da insistente advertência do Senhor (John R. W. Stott, Christian Counter-Culture, pág. 197).

A primeira é que os falsos profetas não eram só uma possibilidade teórica, mas uma palpável e ameaçadora realidade. O Filho de Deus está nos dizendo que o reino do céu tem que ser procurado em um mundo onde mentiras e enganos a seu respeito abundarão. Não há nada de novo nisto. O Velho Testamento está repleto de advertências sobre falsos profetas (Deuteronômio 13:1-3; 18:20-22; Jeremias 23:13-32; 27:9-10; 29:8-9; Ezequiel 13:1-23; 22:28; Miquéias 3:11; Sofonias 3:4). Jesus, na última semana antes de sua morte, soará um alarme final sobre o futuro aparecimento dos pseudo-profetas e pseudo-cristãos (Mateus 24:5,11,24) e as epístolas do Novo Testamento revelam que o mundo dos apóstolos estava cheio deles (Atos 20:28-29; 2 Coríntios 11:1-4,13-15; Gálatas 1:6-9; Colossenses 2:8,16-19; 2 Tessalonicenses 2:8-12; 1 Timóteo 1:19-20; 4:1-2; 2 Timóteo 2:16-17; 4:3-4; Tito 1:10-11; 2 Pedro 2:1-2; 1 João 2:18-23; 4:1-3; 2 João 9-11; Judas 3-4; Apocalipse 2:15,20-24).

É evidente, pelo Novo Testamento, que nunca houve um tempo quando os cristãos não estivessem empenhados em controvérsia com alguma forma de falso evangelho. Aqueles que querem servir o Senhor, mas serem livres de qualquer preocupação opressiva com os falsos mestres, estão simplesmente esperando pelo impossível. Ninguém vai firmar-se seguramente ao caminho estreito sem ter alguns difíceis encontros com pseudo-discípulos que tentam subverter sua fé.

Há um número de cristãos que ainda se agarram ao mito de que houve um tempo idílico na Historia do povo de Deus, quando o falso ensinamento era desconhecido e a paz e a unidade reinavam supremas. Pela segurança de nossa própria fé, precisamos abandonar essa ilusão e perceber que "através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus" (Atos 14:22) e que algumas dessas tribulações virão de nossos próprios irmãos, que falarão "cousas pervertidas, para arrastar os discípulos atrás deles" (Atos 20:30). Nosso Salvador nos deu esta advertência desde o início.

A maior ameaça contra os que estão sinceramente procurando entrar pela porta estreita é aquele grupo de enganadores que parece estar sempre rondando, quando assuntos de vida e de morte estão sendo deliberados. Estes falsos discípulos são mestres em tornar obscuro o que é eminentemente óbvio: a diferença entre a vontade de Deus e a dos homens, a distinção entre o caminho largo e o estreito.

Mas quem são esses falsos profetas de quem Jesus fala? Eles parecem ser não somente do futuro, mas do presente, professores que estavam de pé até então para impedir a entrada das almas sinceras no reino de Deus. Pensamos, quase imediatamente, nos escribas e fariseus, cujas perversões e hipocrisia foram uma preocupação dominante deste grande Sermão. É verdade que eles não eram discípulos de Jesus, mas certamente reivindicavam serem as verdadeiras "ovelhas" da pastagem de Deus.

Em sua última e acusadora censura a estes hipócritas, o Senhor os acusou de fecharem "o reino dos céus diante dos homens", nem entrando, nem deixando ninguém mais fazê-lo (Mateus 23:13). Ele os chamou guias cegos de cegos (15:14) e advertiu seus discípulos para que ficassem longe do seu ensinamento (16:6-12). A advertência de Jesus, certamente, não é limitada à aplicação aos fariseus e os da sua laia, mas começa aí e avança para abranger todos aqueles que pervertem o evangelho e obscurecem a porta estreita.

A segunda pressuposição da advertência de nosso Salvador sobre os "falsos profetas" é que há um padrão objetivo pelo qual aqueles que chegam proclamando falar a vontade de Deus podem ser julgados verdadeiros ou falsos. A mesma pressuposição guiou o ensinamento de Moisés, quando advertiu que, mesmo aqueles falsos profetas que lidavam com sinais aparentes e maravilhas, deveriam ser rotulados de enganadores quando exortaram Israel a desobedecer à vontade já revelada de Deus (Deuteronômio 13:1-4). Os falsos profetas eram aqueles que falavam das "visões do seu coração, não o que vem da boca do Senhor" (Jeremias 23:16). Jesus, como Moisés, não é sincretista, juntando doutrinas radicalmente conflitantes e chamando-as igualmente verdadeiras. Ele já identificou o falso mestre em seu Sermão como sendo qualquer um que quebre o menor mandamento de seu Pai e ensine os outros a fazerem o mesmo (Mateus 5:19).

O espírito existencial destes tempos faz com que os homens se afastem dos absolutos. "A verdade", para eles, é totalmente uma questão de gosto. Mas o espírito do Grande Mestre é inflexivelmente exclusivo. Ele somente, ele diz, é a revelação da Verdade e ninguém pode encontrar Deus separado dele (João 1:18; 14:6). A vontade de seu Pai (Mateus 7:21), suas próprias palavras (7:24), tem que ser o padrão do julgamento. Mestres de nosso ou de qualquer outro tempo, que dizem que "há muitos caminhos para se chegar a Deus" não foram mandados pelo seu Filho Unigênito. Eles são falsos. Eles são enganadores.

Olhando sob a Pele do Carneiro
 
Uma terceira pressuposição, por trás da advertência de Jesus contra os falsos mestres, é que eles são perigosos. Estes pseudo-profetas não são só indivíduos momentaneamente desencaminhados. Eles são corruptos até o âmago, falsos na própria essência de suas vidas espirituais (". . . por dentro são lobos roubadores"). Como o príncipe bestial que os domina (1 Pedro 5:8), seu propósito não é servir, mas devorar. Eles não nutrem seus seguidores, eles os consomem (Atos 20:29-30; 2 Pedro 2:3).
 
Mas o perigo real destes falsos profetas está em seu habilidoso engano. Eles chegam vestidos de ovelhas. Seu verdadeiro caráter e intenção estão sempre ocultos por uma aparência de piedade. Eles se fazem passar por discípulos.
 
O ignorante e o desprevenido que tratam descuidadamente com superficialidades estão destinados a serem enganados por estes espertalhões que, longe de serem abertamente carnais e repulsivos, são, como Paulo os descreve, religiosamente atraentes (2 Coríntios 11:13), experientes na vida (Colossenses 2:8) e encantadores (Romanos 16:17-18). Eles são justamente o tipo de pessoa que levaria os observadores superficiais a perguntar como estes professores bons, sinceros e instruídos poderiam estar errados. Se quisermos andar em segurança no caminho estreito, não é suficiente sermos sinceros; temos que ser prudentes, também (Mateus 10:16).
 
"Pelos seus frutos os conhecereis . . ." (Mateus 7:16). A advertência do Senhor sobre os falsos profetas com certeza iria levar um arrepio de medo através dos corações dos discípulos. No mundo, o reino de Deus tinha muitos inimigos. Isto não era novidade. Mas havia uma ameaça que vinha de dentro, de seus próximos e íntimos camaradas! Como poderiam eles saber em quem confiar? Como distinguir o falso do verdadeiro?
 
O medo dos pseudo-discípulos tem levado alguns cristãos à paranóia. Eles percebem falsos mestres atrás de cada moita e estão constantemente numa disposição de ânimo interrogativo e investigativo. Mas não há nada nas palavras de Jesus que deveria tornar seus discípulos num temperamento suspeito, até mesmo cético, com todos os seus irmãos.
 
É ao nível do fruto que estes julgamentos têm que ser feitos e não antes que o broto surja fora da terra. Como diz Bonhoeffer: "Não há necessidade de ir espiar dentro dos corações dos outros. Tudo o que necessitamos fazer é esperar até que a árvore produza fruto, e não teremos que esperar muito tempo" (O Custo do Discipulado, página 146).
 
Por esta razão não precisamos hesitar em ser justos com os professores que atravessam nosso caminho, dando-lhes o benefício da dúvida até que as circunstâncias estejam claras. Isto não nos tornará confiantemente simples ou nos tornará em carne fresca para cada enganador. O fruto revela a árvore no tempo certo. E parece melhor ser momentaneamente enganado por um lobo ocasional do que estar constante e impetuosamente tentando arrancar a lã de cada uma das ovelhas do Senhor.
 
Ainda, julgamentos terão que ser feitos e advertências emitidas quando chega a colheita do fruto dos falsos mestres. Ainda que a proibição do Senhor de julgar os outros (Mateus 7:1) elimine um julgamento duro e injusto, ela certamente não proibe a examinação dos professores e dos assim chamados profetas. Os espíritos têm que ser provados para determinar "se procedem de Deus" (1 João 4:1). O conselho do Senhor aqui não é o mesmo que na Parábola do Joio (Mateus 13:36-43). Ele não tem nada a ver com fazer o julgamento divino final dos homens e portanto não precisa ser reservado para Deus e a vida futura.
 
Jesus está simplesmente dando conselho prudente sobre como os falsos mestres podem ser reconhecidos e evitados. Os eventos do dia-a-dia os revelarão. Todos os disfarces cairão, finalmente. As pretensões não podem ser mantidas para sempre. As árvores darão fruto.
 
Mas qual será a natureza do engano destes profetas e qual é o fruto pelo qual eles têm que ser provados?
 
Os falsos profetas da era do Velho Testamento eram homens dos quais todos falavam bem (Lucas 6:26). Sua pregação era sempre confortante, mesmo quando as circunstâncias exigiam advertência e repreensão (Jeremias 6:14). Eles profetizavam mentiras (Jeremias 27:9-10), mas eram sempre mentiras atraentes que serviam a seus próprios propósitos egoístas (Miquéias 3:11).
 
A advertência presente de Jesus revela que as coisas não devem ser diferentes na era do evangelho. Os falsos profetas haveriam de falar mentiras intencionais (1 Timóteo 4:2), de modo a atender aos fregueses que buscam enganos confortantes (2 Timóteo 4:3-4).
 
Descuidados das reais necessidades do povo de Deus, estes professores lhes diriam o que eles queriam ouvir. Tais pregadores provavelmente farão pouca ou nenhuma menção à justiça de Deus, o horror ao pecado, a necessidade do verdadeiro arrependimento, ou ao inferno (Atos 24:25). Eles não declararão "todo o desígnio de Deus" (Atos 20:27). Não haverá "caminho apertado" em sua pregação.
 
Mas qual é o fruto destas "árvores corruptas"? O próprio fato de que eles são chamados "falsos profetas" mostra que o fruto de suas bocas é corrupto, falso. Seu ensinamento não passará no exame da palavra de Deus (Atos 17:11). Mas desde que a boca fala "do que está cheio o coração" (Mateus 12:34), o mal na nascente vai revelar-se tanto no caráter como no ensinamento.
 
A melhor defesa contra estes enganadores é amar o Senhor supremamente e apreciar sua palavra. Aqueles que estão sinceramente procurando o caminho apertado e a porta estreita não serão arrastados por estes hipócritas egoístas.
 
O Caráter dos Falsos Mestres
 
Os falsos profetas são, por último, não simplesmente errados em seu ensinamento, mas também em seus corações. A desonestidade com a mensagem do evangelho vai criar a desonestidade na vida. As forças interiores que produzem a mensagem desviada, a princípio (orgulho da vida, temor dos homens, amor ao dinheiro, concupiscência da carne, etc.) inevitavelmente se manifestarão no comportamento, ainda que sutilmente.
 
Esta é a razão pela qual a advertência de Jesus sobre os falsos profetas leva tão naturalmente a uma discussão para testá-los pelo seu caráter, bem como pela sua mensagem. Os supostos profetas têm que ser provados, primeiro, ao nível de seu ensinamento. O que eles têm a dizer deverá ser comparado com o evangelho proclamado "desde o começo" (1 João 1:1-3; 2:18-24; 4:1-3; Gálatas 1:6-8) e, quando o seu ensinamento não for igual ao evangelho, o ensinamento deve ser rejeitado (2 João 9-10).
 
Do ponto de vista de nossos próprios tempos, todos os professores que chegam proclamando nova revelação divina deverão, em vista
do fato que a divulgação da vontade de Deus em Cristo foi completada há muito tempo (João 16:12-13; 2 Timóteo 3:16-17; 2 Pedro 1:3; Judas 3) e a conseqüente terminação do ofício profético (1 Coríntios 13:8), ser rejeitados completamente. Mas, finalmente, o fruto da
árvore corrupta será produzido e sua natureza revelada. Os falsos mestres não podem ser bons homens. O ímpio pode, às vezes, pregar um puro evangelho, mas os falsos mestres são incapazes de viverem vidas verdadeiramente piedosas.
 
A analogia de Jesus referente à natureza: a árvore é conhecida pelos seus frutos, frisa o ponto que a cidadania do reino não é matéria de aparência, mas de existência. As pessoas, como as árvores, produzem o tipo de fruto que sua natureza exige. Portanto, ser um cristão não é simplesmente questão de fazer alguma coisa nova, mas de ser algo novo. É o tipo de vida que começa no coração, no centro da personalidade. Esta é a razão por que só é produzida por um novo nascimento (João 3:3-5).
 
Alguns têm tentado seguir a Cristo acrescentando alguma nova dimensão a suas vidas, quando é a vida em si mesma que tem que ser mudada. Pode-se atar uvas aos espinhos e figos aos cardos, mas eles não crescerão ali. Um lobo pode vestir-se de lã, porém não pode produzi-la.
 
O verdadeiro filho do reino é diferente. Como Jesus disse, "do seu interior fluirão rios de água viva" (João 7:38). O pecado, em todas as suas manifestações, começa no coração (Mateus 15:19) e é, conseqüentemente, no coração e do coração que um novo tipo de fruto tem que ser produzido.
 
É por causa da natureza interior da verdadeira piedade que a examinação dos mestres e discípulos em geral tem sempre que ser uma procura debaixo da pele. Há uma justiça e uma piedade que surgem, não de uma humilde fé no Filho de Deus, mas de um orgulho e do desejo de excelência moral e espiritual.
 
A sutil, porém indisfarçável, falha desse tipo de "espiritualidade" é a total ausência nela de qualidades das bem-aventuranças: a mansidão, a compaixão e a auto-negação, a piedosa tristeza pelo pecado. Haverá também, sobre esta atraente pátina religiosa, uma incapacidade para produzir o fruto do Espírito: "amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio" (Gálatas 5:22-23).
 
É por esta mesma razão que João, lutando em suas epístolas com os mestres gnósticos que ameaçavam, com suas perversões, dominar as igrejas, insiste não só num exame doutrinário dos professores, mas num exame ético.
 
Como muitos movimentos religiosos que apareceram desde então, o gnosticismo floresceu porque ele pegou o espírito da época, que era reivindicar uma profunda espiritualidade que transcendia todas as questões morais e éticas. Os mestres gnósticos ofereciam um novo e aperfeiçoado evangelho, que não sofria o desprezo do mundo em geral e dava liberdade das agonizantes questões da justiça prática. Seu sucesso aconteceu quando abalaram a confiança dos santos fiéis, tanto no evangelho como em sua própria salvação.
 
Em resposta, João fala francamente: "Aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso" (1 João 2:4); "Aquele que diz estar na luz e odeia a seu irmão, até agora está nas trevas" (2:9); "Nisto são manifestos os filhos de Deus e os filhos do diabo: todo aquele que não pratica justiça, não procede de Deus, também aquele que não ama a seu irmão. Porque a mensagem que ouvistes desde o princípio é esta . . ." (3:10-11). Mas, quanto à grande popularidade destes pregadores e de sua mensagem? Isto não mostra que eles são verdadeiros profetas? João, de novo, responde claramente: "Eles procedem do mundo; por essa razão falam da parte do mundo, e o mundo os ouve" (4:5).
 
Os cristãos precisam orar pelo discernimento, pela sabedoria e pela fé para não serem enganados pelos falsos mestres, que cobrem seu erro com uma piedade aparente, mas superficial. Eles precisam, também, procurar a libertação da mentalidade do "sucesso", que vê cada avanço carnal como testemunho da verdade de sua mensagem, enquanto os mandamentos de Deus são abandonados, tanto na pregação como na vida.
 
Para os discípulos que lutam laboriosamente com um mundo antagônico e os ímpios desejos que aparecem até mesmo dentro de suas próprias personalidades, tais profetas de um "novo evangelho" sempre terão um apelo poderoso, mas o apelo é da escuridão, não da luz. "Acautelai-vos dos falsos profetas". "Pelos seus frutos os conhecereis".
 
O Que é o Reino de Deus
 
"Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus" (Mateus 7:21).
 
Como é evidente por esta contundente advertência, o discipulado superficial não é invenção do século vinte. Jesus estava atormentado por ela desde o início de sua pregação pública (João 2:23-24). As fileiras dos entusiásticos, mas insensatos "fãs", pareciam crescer juntas com sua popularidade inicial, e ele estava constantemente preocupado em sacudi-los para terem consciência sóbria do que significava segui-lo (Lucas 14:25-35).
 
Entretanto, estes mesmos eram os naturais herdeiros dos fariseus, e dos insensatos ritualistas que, séculos antes, tinham feito nascer a apaixonada e, freqüentemente, fulminante repreensão dos profetas do Velho Testamento (Isaías 1:11-17; Amós 5:21-24).
 
Com linguagem que se tornou ainda mais penetrantemente franca, Jesus se volta dos falsos profetas para os falsos seguidores e seus falsos padrões. É perigoso para um homem tomar a estrada larga que vai para destruição, de propósito, mas é infinitamente mais perigoso tomá-la, crendo que é o caminho para vida. Gritos entusiásticos de "Senhor, Senhor" podem ser nada mais do que um conveniente bocado de lã para encobrir um coração obstinado. Pode nem haver um lobo debaixo desse pelego, mas ali há certamente um bode! Profissões vazias são tão perigosas para a estrada estreita como os falsos profetas.
 
Não há nada de mau quanto a uma sincera confissão de fé no Filho de Deus e o reconhecimento aberto que ele é o Senhor. Na verdade, não pode haver verdadeiro discipulado sem esta confissão (Mateus 10:32-33; Romanos 10:9-10). Mas a tragédia se instala quando isto é tudo que existe, uma declaração verbal da soberania de Jesus, sem qualquer evidência de submissão (Lucas 6:46).
 
Quem são estes ousados confessores? Eles não são hipócritas conscientes, pois Jesus diz que eles não entenderão a rejeição deles no juízo final (7:22). Eles não são preguiçosos imprestáveis, porque Jesus não disputa sua proclamação de zelosa atividade em seu nome. Seu problema é simples. Em todo o seu dizer e fazer, eles não tinham feito aquilo que ele esperava deles e que era fazer a vontade de seu Pai.
 
Neste ponto, os que aspiram a trilhar a estrada estreita têm que ser muito claros. No reino de Deus, nada será recebido como substituto para a obediência! Certamente não a mera confissão oral. Absolutamente não a diligente prática de ordenações religiosas que se originam no homem antes que em Deus (Marcos 7:1-8). Não, nem mesmo a fiel observância de certos seletos mandamentos de Deus, enquanto outros estão sendo estudiosamente negligenciados ou desobedecidos (Mateus 23:23). E, por último, não será nem aceitação, quando um só de todos os mandamentos de Deus está sendo teimosamente recusado, ignorado ou pervertido (Marcos 10:17-22; Tiago 2:8-11).
 
Isto não tem nada a ver com a justificação pelas obras. Tem a ver com a sincera fé, lealdade indivisa e absoluta confiança. Haverá sempre misericórdia do Senhor para aqueles cujo coração está totalmente decidido a agradá-lo em todas as coisas, pois eles estarão sempre querendo aprender mais, buscar o perdão, e fazer melhor. Mas para o homem que seleciona e escolhe o seu caminho através da vontade divina, nem toda a zelosa atividade religiosa que possa ser montada será suficiente para cobrir o fracasso.
 
"Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! porventura não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres?" (Mateus 7:22). O fato que estes desobedientes confessores fazem a proclamação não contestada, que não somente ter possuído, mas ter exercido, dons miraculosos pelo poder de Cristo sugere que eles eram discípulos. Muitos sentiram que proclamações deles tinham que ser falsas, mas não necessariamente.
 
Quaisquer que fossem seus imensos fracassos como homem, Balaão certamente profetizou pelo poder de Deus (Números 22:35; 23:16).
 
Não pode haver muita dúvida de que Judas Iscariotes, como um dos doze, empregou poderes miraculosos (Mateus 10:1). Os discípulos carnais de Corinto certamente o fizeram (1 Coríntios 1:4-7; 3:1-3). Dons espirituais jamais foram uma garantia da espiritualidade ou da divina aceitação do mestre; somente de que a mensagem era verdadeira.
 
Assim nós, também, podemos pregar o verdadeiro evangelho a muitas pessoas e fazer "muitos milagres," mas afinal sermos rejeitados simplesmente porque não obedecemos ao Senhor (1 Coríntios 9:27; 13:1-3; Filipenses 1:15-17). Estes professores, que se iludem a si mesmos, estavam fazendo a pergunta errada. O grande trabalho que Deus tinha feito por meio deles não serviu para ganhar a salvação; se eles tivessem verdadeiramente servido e agradado o Senhor, isso sim, ganharia a salvação (Lucas 10:20).

A Humilhação Final

"Então lhes direi explicitamente: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim os que praticais a iniqüidade" (Mateus 7:23). A cena que Jesus descreve com estas palavras finais sombrias é a de um grupo de entusiastas que usaram seu nome livremente e fizeram muito alvoroço sobre seus laços íntimos com ele. Pelo modo ardente e reverente com que eles devem ter falado do Filho de Deus, os observadores os haveriam, sem dúvida, julgado como estando entre seus mais devotos discípulos. Ali, certamente, deve ter havido freqüentes e ferventes declarações de que eles conheciam o Senhor. Isto era o talismã espiritual deles, o encanto que lhes deu segurança.
 
E foi justo neste exato ponto em que eles estavam mais orgulhosos, e numa hora e local quando seria mais desesperadamente devastante, que Jesus promete fazer sua profissão. Na presença de toda a humanidade em assembléia, incluindo cada pessoa que jamais o havia ouvido proclamar que ele era deles, ele haveria de dizer, "Nunca vos conheci . . ."! A absoluta humilhação de tal momento, para tal povo haveria de ser quase indescritível.
 
Em Lucas, o Senhor pinta um quadro similar de homens chorando por reconhecimento no juízo final (13:22-30). Mas ali é para aqueles cujo medo da "porta estreita" lhes tira a vontade de até dizer "Senhor, Senhor", quanto mais fazer sua vontade. A base de sua reivindicação não é que eles o tenham reconhecido como um Mestre, ou lhe prestado serviço, mas que eles tinham sido socialmente conhecidos. Ele tinha ensinado em suas ruas e comido à mesa deles.
 
Aqui está um quadro ainda mais surpreendente do que aquele dos ousados professores, pessoas que durante a vida inteira haviam rejeitado o Filho de Deus e, entretanto, ainda estavam esperando, e até mesmo acreditando, que ele não haveria de rejeitá-los.
 
Isto dá novas dimensões à capacidade dos humanos para enganarem-se a si mesmos. Espantoso como possa parecer, há multidões de homens e mulheres, hoje em dia, que sentem que seu repúdio do Santo de Deus foi cumprido com tal cortesia e civilidade que isso não lhes custará nada na eternidade.
 
Em Mateus, diferente de Lucas, Jesus está tratando com aqueles que se consideram seus discípulos. O fato que o Senhor lhes diz "Nunca vos conheci" não significa, necessariamente, que eles jamais tinham sido autênticos, mas que através do tempo em que eles estiveram executando seus ostentosos "milagres" em Seu nome, sua desobediência tinha-os feito estranhos para ele. Por fim, apesar de todas as declarações deles e dos fervorosos trabalhos, eles não estavam em melhor situação do que aqueles que, claramente, haviam rejeitado o Filho de Deus.
 
Jesus não trata com mansidão estes reivindicantes que tentaram trocar submissão por zelo. "Os que praticais a iniqüidade", ele os chama, como se para acordar seus ouvintes imediatos para o fato que, ainda que sutil, este tipo de rebelião encoberta de piedade é séria e sua condenação justa. A mesma palavra aqui traduzida como iniqüidade (grego anomia) é usada de novo por Mateus, registrando a última e forte repreensão do Senhor aos fariseus. Como túmulos caiados, eles tinham uma aparência de justiça, mas eram por dentro "cheios de hipocrisia e de iniqüidade" (23:27-28). João a emprega para descrever a verdadeira natureza e caráter do pecado: "transgressão" ou "injustiça" (1 João 3:4).
 
Mas se estes falsos discípulos são transgressores, eles não estão necessariamente negando que Deus tem uma lei. Para eles é questão, em algum ponto, de, recusar conscientemente a submeter-se à vontade de Deus. Eles não são pessoas que pecam por inadvertência ou fraqueza, mas por desígnio. Aqueles que pecam por fraqueza não praticam uma susposta piedade, mas a humildade e o arrependimento. Eles sabem muito bem o que o pecado custa e não querem nada dele. Jesus contrapõe os feitos destes impostores contra os daqueles que fazem "a vontade de meu Pai".
 
Como já foi notado, o cenário desta conversação prospectiva é o do julgamento final, onde os destinos definitivos estão sendo decididos. O "apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade", de cortar o coração, pode fazer o quadro de Gênesis, de Deus expulsando suas criaturas rebeldes do Éden, parecer quase brilhante. Houve um remédio para aquela tragédia. Para esta outra, não há nenhum.
 
O pecado é sempre uma força separativa, operando alienação da própria pessoa e dos outros, mas o extremo horror do pecado é o expulsão sem recurso da própria presença de Deus. Com que dificuldade lutamos para imaginar como seria jamais olhar a face do amor, bondade ou pureza, jamais, tanto em sua divina fonte como refletida nos homens que foram tocados por elas. Mais de um ano mais tarde, e usando uma linguagem similar, Jesus descreverá a experiência de ser lançado ao "fogo eterno" (Mateus 25:41).
 
Que nenhum de nós jamais possa aprender como a realidade desse momento ultrapassa estas palavras.


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